Um de meus diretores favoritos, Alexander Payne, afirmou certa vez que depois de passar pelo calvário da pré-produção e filmagem, ao chegar na ilha de edição se sente como um sobreviente, um náufrago que alcançou a praia. Claro que nem todo diretor se identifica com essa perspectiva, acredito que nem o próprio Payne a tenha como regra. Dirigi muito pouco na vida, ainda que tenha atuado por dois anos como assistente de direção antes de virar montador. Mas acho que entendo o que o diretor de Nebraska quis dizer. Insistindo nessa metáfora do náufrago-diretor que venceu a tormenta do Set de filmagem, vejo o montador como um habitante da ilha, um nativo que pode ajudá-lo a sobreviver e voltar pra casa para contar uma história.
Pode-se encarar o processo de montagem como essa jornada de retorno ao lar, porém um novo lar que ainda não existe. O náufrago está a meio caminho da Terra Prometida, um mundo imaginado pelo autor do filme e que é ainda mais promessa do que realidade. A minha missão como montador é ajudá-lo a navegar nesse turbillhão de possibilidades de articulação de imagens e sons, mergulhar no inferno de incertezas, feridas abertas, neuroses obsessivas semeadas entre decisões apressadas no pandemônio da filmagem ou antes ainda, enfrentando assombrações, pesadelos e fantasmas que só quem ousa dirigir um filme conhece: o plano que faltou, o limite do orçamento, aquele problema no roteiro, o ator que não funciona, a locação que caiu, a quebra do eixo, da continuidade, das pernas... a insana labuta de talhar realidade a golpes de sonho, paixão e vontade.
Rumo ao desconhecido, ao lar que ainda não existe, a jornada é longa, a correnteza é forte, o tempo; curto. Sempre. Nosso barco é feito de fé em Griffith, Eisenstein, Bazin, Godard e outros semi-deuses. As velas são tecidas a base de técnica e intuição cultivada em anos luz. Nosso mapa nos mostra a posição das estrelas, a mente previsível do espectador de cinema contemporâneo. O material bruto nos serve de bússola e, o mais importante de tudo, o destino da viagem, quem nos aponta é o grande espírito encarnado nesse Filme ainda em estado embrionário. Diretor e montador unem esforços para interpretar as mensagens encriptadas que essa entidade-semente de miragens tenta nos transmitir. E é nessa espécie de comunicação alienígena que cada filme nos solicita e desafia em um idioma particular e único. Cabe a nós a disposição para compreender e nutrir de oferendas esse etéreo ser divino com o que quer que o alimente e satisfaça. Em que ritmo deseja ser embalado? De que conexões e sentidos se compõe o ar que respira? De que dores e deficiências sofre? O que nos sugere para aplacá-las? Que tratamento e forma mais o agrada ser podado? Se tudo der certo, e sempre dá, o nosso porto de chegada, nosso Lar, a tela do cinema, da TV, internet, celular, retina, enfim, o fim da jornada do naufrago herói haverá de nos receber com uma ótima história para contar, divertir, emocionar e lavar a alma.
Aos diretores, um aviso: ao embarcar, não esqueçam de trazer uma moeda embaixo da língua...
Texto publicado originalmente no Videoguru em 24/11/2014.
"Como montador, às vezes me identifico com Caronte, o barqueiro de Hades que na mitologia Grega fazia a travessia das almas sobre as águas dos rios que separam o mundo dos vivos do mundo dos mortos."