top of page
Buscar

Texto publicado no jornal Extra Classe em 10 de junho de 2012

Quem nunca viveu isso alguma vez na vida? Estamos diante de uma situação nova, um desafio, e… travamos. Por que isso acontece? É como as armadilhas do filme Indiana Jones, quando o herói pisa no quarto que guarda o tesouro sagrado. As engrenagens se mexem, a terra treme e tudo vem abaixo. A sensação é de surpresa e aflição. Lembra quando você esqueceu a chave na ignição do carro e o trancou pelo lado de fora? É parecido com isso. Ondas de calafrio, uma química perversa se espalha pelo sangue, um coquetel de toxinas que envenena e entorpece.

A tragédia é que esse travamento é absolutamente normal e faz parte do processo de raciocínio e desenvolvimento das articulações neuronais. O cérebro percebe que lhe falta “musculatura” e se protege de uma estafa desnecessária, dando início a uma reforma no “hardware”. Quando a família cresce e precisamos de mais espaço, acontece a mesma coisa. Acrescentar um quarto ou um puxadinho significa tolerar um período de obras debaixo do nariz. Um tempo em que aquela parte da casa ficará inabitável.

Se levantamos mais peso do que um músculo permite, podemos ter problemas de rompimento de ligamentos ou distensões musculares. Para isso há um treinamento, uma curva de aprendizado que precisa ser seguida na velocidade que nossa estrutura permite. Então, não caia no erro de achar que seu hardware veio com defeito. Não. Não tem nada a ver com isso. Um carro não anda sem gasolina, um músculo não vem pronto para levantar 100 quilos. Não adianta exigir que um aluno resolva o teorema de Pitágoras na primeira série. Isso causaria lesões em sua autoestima que poderiam comprometer o processo normal de desenvolvimento intelectual, gerando sentimentos nocivos, raciocínios equivocados, equações cujos resultados são a impotência e improdutividade. Muitos adultos viveram esse sentimento na infância, e hoje disparam suas armadilhas bem antes de entrar no quarto sagrado, na arena dos desafios. Passam a procrastinar e desistir. Transformam-se em indivíduos frustrados e infelizes.

Por isso, caro professor, cuide bem da semente que está plantando. Mas cuide ainda mais do solo que a recebe, para que ele permaneça cada vez mais fértil e saudável, pronto para as reformas que a vida há de impor no caminho rumo aos tesouros da sabedoria.

 

Quando escrevi o texto acima, há nove anos, eu estava travado. Tentava desesperadamente escrever meu trabalho de conclusão para a Pós-Graduação em Marketing e Comunicação na ESPM. Só consegui terminar um ano depois desse texto. Passei maus bocados. Troquei de tema duas vezes, desisti e recomecei outras tantas até que cheguei ao fim e me livrei. As vezes sonho em fazer um mestrado ou douturado. É só lembrar dessa época que me acordo sobressaltado. O que me desespera tanto nessa coisa de escrever coisas acadêmicas? Hoje desconfio que a explicação acima não se aplica ao meu caso. Sinto que meu travamento não vem de uma suposta falta de preparo ou musculatura intelectual. No caso daquele trabalho de 2012 até faria sentido, pois eu estava tentando elaborar um plano de marketing, coisa de que compreendia muito superficialmente. Mas num mestrado sobre cinema, por exemplo, estaria em tereno mais seguro, com a prática a meu favor. "Alfredo, do que você tem medo então? Por que não tenta fazer esse mestrado?", me pergunta o Selton Melo na sessão de terapia. Ao contrário dos seus pacientes, eu respondo a pergunta: "Acho que sinto medo de frustrar as expectativas dos meus pares, tanto na academia como fora dela. E de frustrar as minhas próprias expectativas também. Sinto medo do meu perfeccionismo por um lado, e da minha procrastinação de outro. Perfeccionismo e procrastinação são duas coisas que não deveriam habitar a mesma pessoa. Quanto ao perfeccionismo, não seria um problema se eu não fosse também preguiçoso e impaciente. Quem é preguiçoso não deveria ser perfeccionista. Isso é uma maldição. Quero um trabalho genial como resultado, mas que me tome pouco tempo e trabalho. É igual aquele fisiculturista de poltrona. Quer a barriga de tanquinho sem passar por dieta ou academia. Queria uma calculadora pra me ajudar nessa equação. Eu sonho com o título de mestre e doutor, dar show na banca, ter publicação, aplauso. Mas queria que tudo isso acontecesse no improviso de um solo numa jam session. Quero mágica. Ser rico sem trabalhar. Ser um hacker da academia." O Selton dá na minha lata: "Pra que você quer esse título de mestre e doutor? O que significa esses títulos pra você?" Pausa... Não sei o que responder. Nunca me perguntei isso. Não quero dizer que sinto inveja de quem tem, o que ele vai pensar de mim? Ele segue. "Um título de mestre, doutor, PhD, etc, é uma comprovação de que você ralou muito pra conquistar o direito de usá-los. É como uma medalha de bravura em batalha. É compreensível que a gente sinta algum tipo de inveja de quem conquistou o direito de usá-la. Mas você acha que veria algum sentido em receber essa medalha sem pagar o que ela vale? Você acha que esses títulos teriam algum valor pra você se os recebesse sem esforço?" Pausa... Eu lembro do "título" de Montador Cinematográfico, medalha que já uso no peito há mais de duas décadas e nunca me senti merecedor. Lembro do meu diploma de "Jornalista" que carrego na consciência desde que me formei na FABICO a pau e corda em 2003, depois de oito anos de matação e falcatruas. O grau de Especialista em Marketing, desde 2013, quando entreguei o trabalho que motivou o primeiro texto desse post, medalha que quase me matou de angústia, ansiedade, desespero e falta de sono... Não sinto que mereço nenhuma dessas medalhas. Será que mereço? A única que acredito merecer (apesar de ainda não acreditar de fato) é a de montador. É a única que tenho provas irrefutáveis de que mereço, mesmo que ainda não me convençam, pois atribuo minha fama à sorte, aos bons projetos que dei sorte de pegar pela frente, aos diretores, roteiristas, produtores e produtoras... "Acho que eu não daria valor nem se merecesse cada letra de cada prefixo a frente do meu nome. O que eu invejo é a capacidade de enfrentar o desafio e de se sentir merecedor ao vencê-lo." O Selton sorri e conclui a sessão. "Continuamos semana que vem?"

5 visualizações0 comentário


Ok, lá vou eu para mais uma tentativa de blog. Há anos que tenho vontade de escrever, mas sempre deixo pra quando tiver tempo. Primeira tentativa já deve fazer mais de 20 anos. Vou postar aqui uma entrevista que dei para uma pesquisa do Eduardo Coutinho para o seu Mestrado em Indústria Criativa na FEEVALE. APÊNDICE C – TRANSCRIÇÃO DA ENTREVISTA DE ALFREDO BARROS


Roberto – Poderia traçar um histórico resumido da tua carreira?


Alfredo – Meu nome é Alfredo Barros. Sou montador. Comecei trabalhando com vídeo de casamento, aniversário, essas coisas mais “amadoras”. Na época eu considerava isso profissional até conhecer uma produção de TV, cinema. Nos anos 90, conheci o pessoal da Casa de Cinema. Comecei a trabalhar com eles como assistente de direção, depois como assistente de montagem. Aí fui assistente do Giba [Assis Brasil]. Foi ele quem me ensinou muito sobre montagem, foi meu guru. A partir de 2000 e pouco comecei a assinar alguns trabalhos como montador. Aí de lá pra cá, eu acabei trabalhando em todas as áreas do audiovisual. Documentário, curta, TV, trabalhei em teledramaturgia, série também. Sempre como montador. E agora sim, de um tempo pra cá, comecei a trabalhar com algumas coisas para web também, publicidade para web. Fiz um pouco de publicidade também. Eu queria fazer bem mais, pois gosto de fazer publicidade, mas acabei pegando mais trabalhos na área de conteúdo. De um tempo para cá, os últimos trabalhos mais importantes, montei “Doce de Mãe”, uma produção da Casa de Cinema para a Globo. Antes, havia feito “Mulher de Fases” como um dos montadores. Tô montando agora o longa “Legalidade" e uma série para o History Channel, chamada “De Carona com os Ovnis”. De uns 2 anos pra cá, acabei montando 4 longas. Um documentário sobre trens, chamado “Depois do Fim” de um amigo meu de Santa Maria e também o “Pra Ficar na História” do Boca Migotto, em parceria com a Globo. Também dou aula. Sou professor de montagem há uns 10 anos. Comecei na Unisinos, depois vim para a ESPM.


R – Uma coisa que eu vejo, o montador está no centro de todo processo. Dentro do teu texto de apresentação, tu fala que o montador trabalha como uma pessoa que serve à ideia do diretor. Então vejo que tu te coloca muito como alguém que ajuda o diretor. Quais são as características que tu acha importante em um montador? E como tu vê a relação com o diretor, mas também com outras pessoas da equipe?


A – Aqui no Brasil a gente tem, pelo menos até a minha geração, uma formação autodidata. Tu aprendia com um mestre, então tu se tornava um profissional. Passa de um discípulo, até que tu começa a ter os teus discípulos. Algo como um monastério, de um passar para o outro esse conhecimento. Percebo que tem uma diferença entre os montadores, uma diferença de métodos de trabalho. Cada montador tem uma série de características que torna difícil traçar algo como “um pré-requisito”. Um pré-requisito de um montador é ser organizado, ter uma capacidade de atenção. Só que eu tenho déficit de atenção, sou desorganizado, e já montei umas 70 obras. Eu sou, então, a pior pessoa para avaliar meu trabalho. Minha preocupação é a melhor experiência possível para o espectador e dentro disso, tentar ajudar o diretor a encontrar esse caminho. Eu vou tentando achar pontos em que aquela informação vai ser melhor entregue para manter a atenção do espectador durante o filme. Talvez uma das missões do montador é conseguir carregar a atenção do público sem ele ficar com tédio no meio do filme, achar lento, chato. Deve-se também, pensar no público do gênero que está trabalhando. Não adianta um filme de terror ser assustador para alguém que goste de filme romântico. Aí tu vai criar um problema. Mas também, tem que respeitar o estilo do diretor, com relação a coisas que ele já tenha feito antes. Cinema e audiovisual é autoral. O montador tem que saber que vai ter que aprender um software de edição e ter um mínimo conhecimento de inglês, pois vai ler manual, pesquisar na internet. Inclusive, é difícil entrar nessa área sem dominar ao menos uns 2 softwares de edição. Não pode abominar a tecnologia. Tem uma frase de um livro sobre montagem, chamado “As Verdades da Edição” em que o autor diz que “a montagem é 5% de criação, 5% de trabalho e 90% frustração”. Tem que ter uma capacidade de se frustrar com as coisas, pois não vão sair como tu quer, nem sempre o diretor vai concordar com as coisas. Tem que ter paciência para lidar com a contrariedade. Tu vai ter muito isso num filme, que não é do montador, é do diretor. Então tem um limite em que tu pode trabalhar com o diretor para convencer o cara que tem coisas que tu acredita que vão ser melhores para ser entregue ao publico. O Giba foca na montagem, em contar a história. Ele vai contar a história, colocar indicações de música, de ruídos, o mínimo necessário para marcar aquilo que acontece. Ele não vai se preocupar se aquela porta que tá fechando é o melhor som de porta batendo, se o carro que aparece é aquele carro. Ele vai botar um carro, uma trilha, uma referência. Uma coisa que eu admirava muito é que ele respeita o processo de cada um dos criadores. Às vezes a gente avançava um pouco quando era mais importante. Na música, por exemplo, quando era necessário, a gente pedia para o diretor musical sugerir trilhas. Eu tive uma experiência no Rio, com o Lucas Gonzaga, que pra mim é um dos melhores montadores do Brasil ou do mundo hoje. Eu vi como ele trabalha. Ele tem uma relação com o diretor e com os outros técnicos da equipe. O Lucas não teve muita oportunidade de trabalhar com pessoas que dessem conta de entregar para ele uma edição de som, um sound design em que ele dissesse “nossa, ficou muito melhor que eu tinha imaginado!” Ele tem muito receio de deixar isso na mão do editor de som, deixar isso na mão do cara da música. Ele não consegue terminar uma edição sem deixar o som com tudo. E pesquisa o melhor som, a trilha. Aí o diretor chega para o músico e pede para repetir a referência, com pequenas mudanças. Eu pensei “cara, tu perde um tempo terrível com isso!”. Ele é um montador brilhante porque ele domina essas coisas. Eu trabalho muito com a imaginação, ofereço o que tenho para o cara do som, ele vai fazer muita coisa, criar em cima. Quando eu assistir, vou me surpreender com a qualidade daquilo. Mas isso não é um padrão do mercado. Tem diretores que vão querer um montador que tem esse perfil do Lucas, outros que tenha um profissional para cada etapa. Já aconteceu de eu trazer muita trilha e o pessoal me frear. Isso é com o diretor musical. Assisti uma palestra do Thiago Bello falando que foi para Berlim e viu uma palestra de um montador que disse que quem faz referência de música é o cara que vai fazer a trilha do filme. O montador não bota a referência. Sempre a música que se trabalha na montagem vem do compositor do filme. Esse talvez seja um caminho mais interessante que esse de querer fazer tudo. Para mim, cinema é muito equipe, é um trabalho em equipe. Cada cara vai fazer o trabalho de criação dele que é específico daquela área. Acho muito legal que tenha alguém que vá pensar nisso depois: trilha, edição de som, correções de cor. Uma coisa que tu comentou me chamou a atenção, que o montador tá no meio do processo. Mas eu me vejo mais na ponta, pois estou dentro da pós- produção. Talvez essa ponta seja muito maior do que parece. Tem a pré-produção que é enorme, todo um trabalho logístico. Aí tem o set de filmagem que é, talvez a parte mais curta do processo e daí vai para a montagem que dura 4 meses às vezes. Eu sempre vi isso como uma ponta, mas na verdade o filme nasce mesmo ali. Todo resto é gestação: o roteiro tem uma imaginação; a filmagem é uma execução daquele planejamento todo, daquela decupagem e ali ainda tem muita coisa aberta. Ele começa a ganhar personalidade, virar um ser, quando entra no processo de montagem. Também é gestação, mas já vão se definindo coisas. Tu vai tomando decisões que vão dando a cara do filme: o ritmo, a batida; a trilha; a estética. Vai conduzindo quando junta essas coisas. Já fica muito próximo [na montagem] do que vai estar na tela do cinema. É um processo muito bonito, é um trabalho de criação. Fui percebendo com o tempo, que na montagem o filme ainda tem um range absurdo de possibilidades. Tem vários exemplos no mercado filmes que mudaram na edição. É talvez, pra mim, uma função no cinema onde o aprendizado sobre linguagem é muito intenso. Possibilidades de articulação, de narrativa, porque tu tá trabalhando com o diretor, que tá criando o filme. É possível sugerir muita coisa. Esse diálogo é rico.


R – Aqui, nosso processo é um pouco mais artesanal...


A – A gente tem uma dificuldade de manter registros dos processos como um conhecimento. Fazer relatório, ter um estudo em que se possa passar para outro projeto, para outra equipe. Agora existem os cursos de cinema, que talvez tenham uma forma de sedimentar esse conhecimento. Mas a gente tem essa coisa artesanal. A gente precisaria ir consolidando esse conhecimento, que é de um monte de gente. Poderia haver mais congressos para se encontrar, falar sobre seus processos, coisas que se descobriu. Eu participei de 2 congressos. Um da associação de montadores que tem em São Paulo também no encontro da associação de editores do Rio [de Janeiro]. Essa experiência de ir pra lá, escutar outros montadores sobre os processos deles, coisas que eles fazem hoje. O Ernane, que cuida da cinemateca, falou da importância que tem um montador para preservar a memória dos filmes e a memória do país. Se tu tá fazendo um documentário, tem muito material bruto. Tu monta teu filme e as brutas muitas vezes são descartadas e vão para o lixo. Ali se perdem coisas. Mesmo se pegar filmes de ficção, tu pode fazer um resgate sobre os atores que trabalharam. Ter um plano bruto das pessoas preservada é uma coisa maravilhosa. E quem tem que cuidar disso é o montador. Ele vai separar e armazenar o material bruto. Como ele vai dar conta disso? Então, todas essas coisas têm a ver com algo que seria talvez a necessidade de profissionalizar esse mercado, preservar esse conhecimento todo que está nessa artesania. Por outro lado, tem vantagens dessa coisa do artesanato, que te permite ter soluções que se tu tivesse fechado, isso começa a te embretar numa maneira de fazer. E no artesanal, tem pessoas que vão fazer coisas geniais, mesmo em projetos malucos em que tu tem um conhecimento prévio e pensa que não poderia fazer desse jeito, precisaria ter um orçamento e tal. Mas o cara, como não sabe que é impossível de fazer, tenta e faz o filme. Tem um exemplo ótimo do cara que fez o longa “Eu Odeio o Orkut”. É um longa-metragem feito em Alvorada. Ele mandou o roteiro, eu comecei a ler e tinha uma perseguição de lancha, um helicóptero que descia no centro de Alvorada. De dentro descia a Luana Piovani e dava um beijo num cara. Daí eu disse “cara, tu não vai conseguir fazer isso, tu não tem dinheiro!”. Ele respondeu: “não cara, essas cenas aí eu já fiz, sem nenhum dinheiro”. Para conseguir dinheiro, ele ia batendo nas lojinhas em Alvorada. Então quando inicia o filme, ele tem uns 15 comerciais de empresas que ajudaram ele. Ele pagou para eles colocando um comercial de cada um no começo do filme. Esse tipo de coisa é genial. É um tipo de coisa que só sendo artesanal tu vai ver acontecer.


R – A maioria dos projetos são viabilizados através de leis de incentivo, mas tu trouxe um bom exemplo de se produzir um projeto independente com pouco dinheiro, sem ajuda de leis de incentivo. Quais caminhos para se viabilizar um projeto audiovisual?


A – Eu tento ajudar ao máximo que posso nos projetos que não tem grana. Mas acabo não tendo tempo para meter a mão diretamente. Aí eu tenho alunos brilhantes, que são montadores. Quero que eles tenham vivência de mercado, possam experimentar montar, contar uma história. Então, tento fazer essa ponte. Entro em contato com eles e crio essa possibilidade. Aqui na ESPM eu tenho tentado fazer isso para eles usarem como horas complementares. Tem essa coisa que é a vivência dentro do mercado e ao mesmo tempo há um respaldo, uma “incubadora" que protege os alunos. A ideia é exigir do aluno o máximo de profissionalismo dentro de um projeto real. Ele vai ganhar créditos, ver o trabalho dele na TV, no cinema. Como viabilizar um projeto é algo da área da produção. Depois de quase 20 anos trabalhando com isso, os projetos que chegam para mim geralmente já passaram por uma estruturação. Eles têm lei de incentivo, tem edital. No começo, eu entrava para ajudar a entrar em edital, etc., mas comecei a aprender com o tempo que tem pessoas que levam anos para entender como viabilizar um projeto, assim como eu levei anos para me tornar um montador. E estas são pessoas que estão aqui no mercado. Tem muita gente capaz aqui em Porto Alegre, por isso temos esse volume de projetos. Gente jovem, já fruto dos cursos de cinema. Começa a sair um pessoal que entende de edital, entende de produção executiva. A melhor maneira para o cara começar a entrar no mercado é tentar fazer um curso de cinema. Na época que eu comecei, tinha gente que se formava em jornalismo, publicidade e vinha para o mercado audiovisual começando como assistente. Não tinham muita experiência, mas era o que se tinha de interessado em aprender cinema. Só que hoje, quando preciso de um assistente, é melhor pegar um cara formado em cinema, pois muitas vezes ele sabe mais que eu sobre técnicas, sobre história do cinema, estética... ele tem uma formação de 4 anos em cinema, tem substância. Existe aquele que quer entrar no cinema, mas não tem 1% do conhecimento daquele formado. Então é lógico que hoje a barreira aumentou. Só tendo vontade, conhecendo pessoas, fica mais difícil. Tem que ter uma vivência na área. Em funções específicas, pode-se fazer cursos especializados. Há os canais como YouTube e Vimeo, onde se começa a produzir, ganhar visibilidade com isso. Se esses projetos ganham visibilidade, vão te lançar para outros. Há esse caminho, essa possibilidade. Na raça tu faz, mostra que tu é bom e vai. Mas o povo que entra pelas beiradas, que começa como assistente está muito mais qualificado. Então fica mais difícil de passar na frente deles hoje. Tem curso na PUCRS, na Unisinos. São cursos excelentes, considerados os melhores do Brasil. As pessoas saem dali com uma qualificação absurda. Como eu dou aula na ESPM, eu tento favorecer gente daqui. Apesar de não ter um curso de cinema, tem o de multimídia. É muito intensa a formação audiovisual dentro da publicidade também. Então tem caras que saem daqui muito qualificados. Eu tento colocar essa galera na roda. Isso foi uma coisa que mudou no mercado da época que entrei para agora. Tem essa questão para quem tá chegando.


R – Tu começou a trabalhar nos anos 90, então trabalhou também com o analógico. Para ti, qual o impacto das mídias digitais, do ponto de vista das ferramentas de produção, de busca do conhecimento e também da distribuição e exibição do audiovisual?


A – As mídias digitais para mim acho que são a maior revolução de todas. Acho que ninguém esperava que fosse existir essa facilidade de se colocar um produto no ar. Eu vivi a absoluta impossibilidade de isso acontecer. A gente sonhava em botar um filme no cinema. Colocar na TV já era uma coisa incrível. Agora tu posta um vídeo e manda um link para as pessoas assistirem. Isso era impensável. E ainda pode virar um mercado onde tu ganha grana. Até hoje é difícil para eu conseguir assimilar isso, apesar que, para quem vive hoje, passou a ser uma realidade, virou algo banal. Já, a ferramenta para o uso, que é o software de edição, não existia quando eu comecei, mas foi sonhada. Então quando veio, preencheu uma lacuna. Era um sonho poder editar no computador daquele jeito, como usar o Word. Então quando aconteceu, a gente queria devorar esse negócio. Eu peguei o Final Cut pela primeira vez quando eu voltei para a montagem. Comecei montando em VHS. Mas quando entrei no cinema, era assistente de direção. No filme “Era uma Vez Dois Verões” eu fui assistente de direção e também assistente de montagem. A partir dali eu não voltei mais para o set e fiquei só na assistência de montagem. Então quando entrei ali, minha vontade de mexer naquele software, eu devorei o manual do Final Cut, virava a noite na Casa de Cinema para aprender a usar aquele software. Criei um grupo de discussão que tinha mais de 800 membros na época. Tinha gente do Brasil e de fora para trocar dúvidas. Eu era apaixonado pela tecnologia, muito mais que cinema. Nunca fui cinéfilo por exemplo. Eu adorava botãozinho, tecnologia, como fazer uma fusão... aquilo me encantava. Então aos poucos comecei a interagir com o diretor, comecei a curtir isso também. Mas até hoje não sou o cara que vê maratona de filme do Oscar. Não tenho essa loucura. O Ulisses [da Motta] por exemplo, que é fissurado em história do cinema. Eu acho legal, mas eu curto mesmo a tecnologia. E também a magia da montagem. Quando eu descobri o efeito Kuleshov, aquilo mexe com a mente do espectador. E tem todo um lado que é a coisa bacana desse meio: exibir um filme, ter uma equipe, aquela empolgação de gincana, de terminar, botar no ar... aquilo ali é uma adrenalina que eu acho muito legal, que tem no processo de fazer filme. Estar cercado de gente bacana. Claro, quando tu tem a sorte de trabalhar com pessoas assim. Mas essa coisa que me encanta no cinema. Eu tentei até virar finalizador. Tentei aprender a usar o After [Effects]. Mas eu já tinha uma demanda de montagem e vi que teria que investir horrores de tempo para aprender esse software. E a coisa da finalização envolve outro tipo de habilidade que é o design, as formas, o movimento. Tem uma outra pegada que é em outra área. Aí tem que ter uma baita dedicação pra aprender. Isso não é muito minha praia, então fiquei na montagem mesmo. Mas o que mais tu havia perguntado?


R – A questão era sobre o impacto da era digital na produção audiovisual...


A – Ah sim! [O acesso do profissional às ferramentas] é uma coisa de varia. Eu sinto que às vezes fica muito acessível e daqui um pouco dá uma queda. As máquinas ficam caras, o software fica caro... hoje por exemplo, a máquina que eu uso teve um aumento de preço absurdo. Está muito mais caro que era a um tempo atrás. Não sei se vai baratear de novo. Tem períodos que isso fica mais acessível, outros menos. Mas por outro lado, o software nunca foi tão barato. Mesmo os mais caros, como o Avid ou o Premiere, hoje tem pacotes em que se paga um aluguel e se ganha acesso de uso. O Final Cut é um software que custa mil e poucos Reais e é fácil de usar. Então, neste sentido, o acesso nunca foi tão fácil. E hoje tem softwares como o Da Vinci e o Lightworks que são super profissionais e gratuitos. A questão do hardware que é um pouco mais complicada. Mas se pensar como era nos anos 80, onde uma ilha custava R$ 100.000,00, está muito mais acessível hoje.


R – Fazendo um comparativo entre a produção audiovisual do Rio Grande do Sul com relação ao resto do Brasil, principalmente São Paulo e Rio, que são os grandes centros... tu acha que a gente tem conseguido se equiparar?


A – Acho que aqui no RS a gente não deve nada para fora. Temos profissionais, tanto do ponto de vista artístico quanto técnico, que não deixam nada a desejar para o resto do país. Tem algumas áreas, como o som, em que eu fico impressionado com a qualidade da produção daqui. Tem o Thiago [Bello], a Gabriela [Bervian], o Kiko [Ferraz]. E hoje a gente tem colorista, que era algo que há um tempo tinha que subir para São Paulo para fazer. Hoje tem gente super qualificada e com conhecimento do workflow inteiro. O [Daniel] Dode por exemplo. É um cara que conhece desde a pré-produção até a projeção no cinema. Ele domina todo o processo tecnológico, como captar, como armazenar, como fazer os metadados para fazer o offline, o online e depois juntar isso tudo, fazer o DCP, correção de cor. Ele tem sala para isso com a mesma qualidade que em São Paulo. A gente cresceu muito aqui. Tem outras áreas onde fica difícil avaliar, como o roteiro. Acho difícil falar em coisas erradas ou certas dentro do audiovisual. Mas claro que, tecnicamente, um som de qualidade é um som bom tecnicamente, que é o padrão confortável para o espectador. Esse é o mínimo para começar a dialogar. Mas acho que nesse sentido estamos super bem. O que a gente mais sente falta aqui é demanda de trabalho. Porque vai tanto gente embora? Tem muito mais séries acontecendo no Rio, São Paulo. Então tem uma demanda muito maior. Aqui as pessoas estão se matando por meia dúzia de editais, mas a ANCINE tem trabalhado para melhorar isso. Tenho achado o trabalho da ANCINE maravilhoso. Mudou o cenário do cinema brasileiro. Ele renasceu a partir do trabalho deles. Eu acompanhei o congresso de cinema aqui em Porto Alegre, onde criaram a ANCINE. Negociaram, criaram a Lei do Audiovisual, a Lei da TV a Cabo. Tudo isso foi um processo. O tamanho que tem o Fundo Setorial hoje é uma conquista inegável. E é uma coisa muito difícil de derrubar porque já passou a ser lucrativo para todas as bandeiras. Para a Globo é uma coisa crucial, eles contam muito com esse fundo. As TVs, o pessoal que vem de fora, as coproduções. Isso gera emprego e dinheiro. O dinheiro que é investido no cinema não fica no bolso de um cara, ele volta para o mercado. Ele vai para os restaurantes, os marceneiros, os taxistas, os Uber... o dinheiro se esfarela todo naquela região, não fica na mão de uma pessoa, é reinvestido no mercado, em outros setores. Pega a lista da equipe de um filme e vê a quantidade de lugares para onde foi o orçamento. Talvez falte um estudo para mostrar o quanto isso impacta na economia local, mas é um negócio que acontece e que as pessoas não se dão conta. Parece que o cineasta pega o dinheiro e vai gastar na Europa. O cara mal consegue pagar o cafezinho, mas ele botou dinheiro na mão de um monte de gente. Então é muito legal essa perspectiva de mercado do cinema. Às vezes o cara que fala “são uns vagabundos, pegam dinheiro do governo...” tem uma empresa de aluguel de carro e vai acabar alugando carro para uma equipe de cinema. O cara tá xingando a equipe de produção, mas ele ganha dinheiro com isso. Por isso é importante estudar e mostrar essa realidade.


R –Como se organizam as redes de trabalho de produção audiovisual sob o ponto de vista da mão-de-obra e dos fluxos de processos? Tu já deu vários exemplos, mas poderia aprofundar essa questão?


A – Eu nunca parei muito para pensar sobre como isso acontece. Sempre me pareceu meio que uma sorte, mas nunca é sorte. O cara vê um crédito num filme que ele gostou, daí ele fala com um amigo sobre esse trabalho. Tem um caso que aconteceu a pouco tempo comigo. O Paulo Nascimento que é um diretor daqui, um cara que eu respeito. É um dos caras que mais filma aqui. Ele tem um parceiro que monta todos os filmes dele, o Marcio Papel. Eles estavam produzindo uma série e tinham um filme para ser lançado. Estavam precisando de um trailer, mas o montador não tinha tempo. Daí começaram a pensar quem iam chamar. Através de outras pessoas, entraram em contato comigo. Eu nunca havia trabalhado com ele, mas tinha amigos em comum. Então surge esse contato através da rede de amigos, de outros profissionais, de atores. Eu comecei a descobrir isso há um tempo. Para o montador, o ator é um bom contato, porque o montador pode valorizar a atuação dele. Então no próximo filme que ele vai fazer, ele vai sugerir esse montador para garantir o sucesso que teve no trabalho anterior. Já aconteceu comigo, tanto em filmes onde eu comecei a montar, mas o ator queria que fosse outro montador, como o contrário: eu montei filmes onde a atriz ou o ator me indicaram para o diretor. Então, comecei a descobri essas coisas, de onde vem os meus contatos. O profissional não costuma fazer essa pesquisa de saber quem o indicou e começar a entender onde estão as conexões. Depois que tu tem um tempo de mercado, o próprio trabalho começa a promover isso. O cara conhece teu trabalho, quer trabalhar contigo porque viu um filme que tu fez e curtiu. Mas tem muita gente que ainda não tem esse portfólio e são pessoas super talentosas. Então, como essas pessoas vão buscar as conexões? Na Casa de Cinema tem gente que mete a cara e deixa um currículo. Eles olham todos os currículos, eles chamam eventualmente. Claro que tem muita gente querendo entrar ali, mas o que acontece ali é que um acaba levando o outro. Quem tá lá, acaba indicando outro. O Giba [Assis Brasil] dá aula, então tem muito aluno que acaba indo trabalhar lá. Mas é um negócio que a gente não tem muito conhecimento. Eu comecei a me dar conta disso agora que estou trabalhando em um sistema mais profissional na Talho. A Talho é como uma agência, uma casa de montadores. Tu precisa de montagem? Entra em contato com a Talho, a gente tem uma carta de montadores com diversos perfis, onde o currículo pesa mais. Ali eu comecei a me dar conta dessa necessidade. Prospecção? Não sei nem onde começar a fazer prospecção. Agora me surgiu com o Paulo Nascimento a questão do trailer. Me dei conta que quem encomenda trailer é a distribuidora, não o diretor ou o produtor. A distribuidora tem uma carta de montadores de trailer, que é um tipo de produto específico, meio publicidade, meio cinema. Eu pensei em entrarmos nesse mercado, então pegamos os portfólios e fomos atrás das distribuidoras. Tem o cara querendo vender, mas como ele vai me vender se ele não sabe como vai atacar. O diretor já tem seu montador. Então começamos a pensar que o cliente da Talho não é a produtora, não é o diretor. O cliente da Talho é o montador. Ela tem que se vender para o montador. Se o montador gostar da ideia da empresa, vai entrar na carta. Daí todas as pessoas que ligarem para ele montar, vão entrar em contato com a Talho, que faz o intermédio. Então, quanto mais montadores fizerem parte, mais projetos vão vir. Acho que a Talho é uma empresa do futuro. Ela entrou em um mercado que não está totalmente preparado, então tem um monte de investimento para vender a ideia, inclusive para os montadores. Ela oferece um consultor jurídico, um apoio na negociação. Mas o mercado de Porto Alegre é muito pequeno ainda. O trabalho para publicidade despencou e o de conteúdo aumentou, mas aumentou muito mais lá em São Paulo, Rio, que aqui. Então a ideia de Talho era buscar trabalho e montadores lá, mas tem um caminho pela frente para chegar nisso. Tem muita coisa que tá surgindo no audiovisual. Tem uma demanda muito grande, mas onde está isso? E tem uma tendência da produção começar a ser feita pelas próprias empresas. Ao invés de contratar, se cria um núcleo de produção dentro da empresa que vá suprir essa demanda. Isso bagunça o mercado, mas valoriza a educação audiovisual. Na ESPM surgiu um curso de multimídia que foi uma demanda do mercado. Não era de fazer vídeo, porque o profissional ia ficar restrito ao YouTube. Eles querem um cara que entenda de multimídias. Além da área de games, que tem chegado cada vez mais perto e tem se fundido com o audiovisual.


R – Como tu vê a conexão entre o profissional do audiovisual com as empresas?


A – Eu acho que o nosso mercado é muito informal, tem muito amador. Quando a gente fala em profissional, falo em criar padrões, certificações, manuais. Tu formaliza esse mercado e começa a ter um meio profissional. Se cria um piso salarial e acaba com leilão. Se não ocorre isso, o mercado se fragiliza, pois fica refém de quem tem o poder de contratar. Neste sentido, todo mundo que entra no mercado tem muito pouco levantamento de dados para planejar os investimentos, as conexões. Tem uma coisa que mudou de um tempo para cá, que foi a criação da APL [do Audioviusal]. Isso foi uma tentativa de se articular as empresas que estão no mercado audiovisual para se ter metas em comum. Então se vê o que falta para essas empresas e se estrutura ou fortalece isso, como é o caso da distribuição. Teve um trabalho super importante da Fundacine, que é fazer censos. Infelizmente, a gente não dá valor para esses levantamentos. Esses dias respondi um levantamento. onde me perguntaram coisas que eu não sabia responder como, qual a média de cachê, quantas horas por semana se trabalha nos projetos. Na Talho a gente tem um software que conta quanto tempo se está envolvido nos projetos. Aí chega no fim do projeto, e pode ver quanto se ganhou por hora. Mas é um hábito que a gente não tem, medir para poder projetar. É tudo meio no chute: “esse cliente tem grana, então vou fincar o pé; esse tem menos, então vou fazer quase de graça”. Transformar essa informalidade em algo que permita criar essa ciência toda, é uma coisa que a gente tá evoluindo. Melhorou muito e o APL é algo que trabalhou nesse sentido, para consolidar essas questões.


R – Tu falou dessa questão no RS. Mas dentro dessa tua vivência aqui e de trabalhos externos, quais as diferenças de comportamento do mercado produtivo daqui com o do Sudeste?

A – Eu tenho pouca vivencia lá fora, no Rio e São Paulo. Peguei alguns episódios de uma série que o Lucas tava montando. Lá tem assistentes com uma formação sólida e eles tem método para trabalhar. Pega uma O2 por exemplo, que tem um método, uma maneira de fazer, muita produtividade. Então eles acabaram influenciando muito o mercado em São Paulo. Acabou funcionando como uma escola. Eles treinaram as pessoas que estão no mercado. Na minha área que trabalho eu percebo isso: lá tá mais consolidado o método, os padrões, as certificações. Até a formação lá tem há mais tempo, como cursos de cinema. Com relação à contratação, também percebo que há uma diferença: lá eles contratam por semana. Se tu vai montar um filme, eles já sabem mais ou menos quanto é o cachê de cada montador, que varia de um piso até o topo. Daí, vendo o orçamento, dá para calcular as semanas de trabalho. E eles respeitam muito isso. Enquanto tu estiver envolvido no projeto, eles estão te pagando a semana de trabalho até entregar o produto. Eles te pagam a semana, porque tu tá à disposição. Aqui a gente tem uma série de vícios da informalidade. Se tu trabalhou só 2 horas no projeto, o produtor vai querer te pagar só estas 2 horas. Já lá, se tu entra para trabalhar a semana, vai trabalhar as horas combinadas, à disposição do projeto. Essa coisa de “vou dar aula hoje, vou pegar minha filha na escola” não tem. O negócio é uma indústria. Apesar que essa é uma coisa que eu gosto aqui. Tu tem jogo de horário. Lá tu entra num esquema de indústria. Hollywood é mais ainda. A O2 produz para eles, então tem o mesmo modus operandi. Outra coisa é que lá eles têm o piso, a tabela do Sindcine. Então quem é sindicalizado não cobra baixo. Ficam claros os mercados: o mercado mais profissional; o mercado intermediário; o mercado mais informal. Neste [último], os caras vão cobrar pouco, como por exemplo, o pessoal que edita coisas de YouTube, que é novo mercado que surgiu. Tem muita gente trabalhando com eles. Aí sim, tu vai ter o cara que paga 50 pila por um vídeo e outro que paga 500. Não tem uma formalidade.


R – Quais são tuas perspectivas para o futuro do audiovisual no Rio Grande do Sul?


A – Isso para mim é


uma incógnita. Eu já vi despencar umas 2 vezes. Quando acabou a Embrafilme, eu lembro que foi um desastre. O Jorge [Furtado] falou isso num curso que a gente fez em 1995. Ele comentou que o "Ilha das Flores” foi feito na época em que haviam acabado os recursos e eles criaram um projeto na Casa de Cinema chamado “Foda-se”... “não tem dinheiro, foda-se, nós vamos fazer um filme esse ano”. Então esse era um projeto e o primeiro filme que foi viabilizado foi o “Ilha das Flores”. Depois disso, na época da ACINAV, os caras derrubaram todo um esforço que estava para se fazer, para entrar com a TV aberta. A Lei da TV a Cabo foi tentada anteriormente com a TV aberta e a Globo boicotou, todo mundo boicotou. Aqui [no Rio Grande do Sul] teve um momento em que cresceu muito [a produção], na época da RGE. Havia investimento de milhões no cinema. Aí deu um “enrosco" e eles pararam de investir. Então a gente vive sempre essa coisa. O Brasil na história do cinema são ciclos. Agora, umas regiões estão muito bem, como Pernambuco, onde estã


o investindo muita grana. Esse discurso do dinheiro que é investido no cinema volta para o mercado começa a ter uma aceitação. Para mim, o maior problema é que o audiovisual brasileiro é visto dentro do Brasil como estrangeiro. Tem um estranhamento. A gente não vê o cinema como uma coisa nossa. A nossa cultura parece que não é aquilo ali, nossa referência toda é de fora. Na identidade nós somos muito mais norte-americanos que brasileiros. Então, quando se vê filme brasileiro falando sobre brasileiro, a gente vê como se fosse outro país. É uma loucura isso! Tem essa esquizofrenia, que é a grande barreira para a gente decolar. Outra questão é essa de “ah, tem que valorizar, tem que ir lá ver o filme”. Mas o povo que tá sendo atendido, digamos assim. Não tá faltando audiovisual para esse povo. Tem muito filme americano e o cara se identifica. Minha filha falava que não conseguia prestar atenção se o filme não fosse falado em inglês. Ela tinha dificuldade de se concentrar na história, mesmo que ela desde criança, conviva com essa coisa de eu estar fazendo um filme, editando em casa. Para ela, o que eu faço é uma coisa, é legal, mas cinema brasileiro é diferente, ela não gosta. E tu vai ver que no mercado tem muito profissional com essa relação. Ele assiste séries, filmes [norte-americanos], mas não vê filme brasileiro. Essa coisa com o público, como se vai resolver, não é metendo na cabeça, obrigando a assistir. A gente tem que achar um caminho. Esses dias eu li em algum lugar que a gente tinha que fazer a tropicália no cinema. O que é a t




ropicália? Eu me apropriar do rock’n’roll, começar a fazer frevo com guitarra elétrica. Então me apropriar de Hollywood, fazer uma sátira, fazer algo brasileiro. Se apropriar da cultura dos caras, porque é através dessa cultura que tu vai conseguir acessar o público. Eu já falei para meus amigos, que a gente tinha que fazer um filme todo falado em inglês, com os nomes [dos personagens] em inglês, o nome da produtora em inglês, com legenda, como se fosse um filme americano. Só que a gente vai falar do Brasil. Vou ter que me vestir de americano para falar com ele [o espectador]. Então que seja isso, mas tem qu


e fazer alguma coisa para poder deslocar, provocar essa reflexão. O público brasileiro não conhece cinema brasileiro. É difícil porque tu tá entrando na área do entretenimento. Daí tu vai lá dizer para o cara com o que ele tem que se entreter. Mesmo do ponto de vista de marketing, se pensar em negócio. Como vai enfiar um produto guerra abaixo do cara se o cara não tá precisando daquele produto? “Tu trabalhou o dia inteiro e daí chega em casa e não vai ver um enlatado, vai ver um filme brasileiro cabeção, tu vai curtir, entender a cultura do teu país...”. Mas o cara que ver o Robocop, onde vai se divertir. Não quer ficar pirando numa reflexão de um cineasta. Aqui eu tô falando do cinema de arte, que é super importante, mas como vai trazer esse público para o cinema? Esse é o maior desafio que a gente tem na área do audiovisual. Acho que o Netflix cumpre um papel bem legal nesse sentido, apesar de ser uma empresa americana, tem uma coisa que achei genial e me deu uma esperança. O Zeca Brito, diretor de cinema, me contou que tem um filme que eles estavam tentando distribuir sobre os anos 90. O distribuidor não estava dan


do muita bola para o filme dele. Então o Netflix entrou em contato com o distribuidor para comprar o filme, pois os algoritmos “adoraram” o filme, através das palavras-chave. Ele [Zeca Brito] viu que tem uma série baseada nos anos 90 que está fazendo muito sucesso no Netflix. Quando o cara termina aquela série, ele tá louco para ver qualquer coisa parecida e aí vai vir o filme dele. Essa sacada que a Netflix tem de mercado, o cinema brasileiro é analfabeto. Fala em marketing para o cineasta brasileiro, ele ignora. Quer falar de arte. O que o público quer ver? “Não interessa! Não precisa ver porque eu já recebi para produzir, tá pago, então o filme fica para mim”. Tem essa mentalidade. Tem um lado que eu acho legal isso, porque daí vão surgir filmes importantes que vão ganhar prêmios fora. Filmes do ponto de vista artístico, que vão ficar para a História, que estão pensando na nossa cultura, etc. Mas parece que falta uma coisa que seja inteligente, educativa no sentido de fazer refletir, mas que consiga dialogar com esse público que não quer saber de ver filme brasileiro. Outra questão é que se instalou uma apologia à ignorância. Então, é difícil fazer cultura num país em que há apologia à ignorância. E ao mesmo tempo eu vejo nosso cineasta que não quer nem ouvir falar de marketing, de business, que não quer entender o público, demanda. Tem um preconceito com isso. Eu fiz jornalismo e depois eu fiz uma pós em marketing na ESPM. Mas eu não aprendi sozi


nho. Entrei em equipes que me ensinaram horrores. A Casa de Cinema foi uma escola, em que aprendi em todas as áreas. Postura no set de filmagem, hierarquia, profissionalismo, o respeito pelas pessoas. Eles se matam para conseguir levantar uma pré- produção para chegarem no set se divertirem fazendo aquilo. Tudo flui, todo mundo rindo, as pessoas se tratando com respeito. O que eu percebi lá é que, às vezes entra um cara novo e esse cara começa a “dar piti” no set. Esse cara não volta mais. Sobre essa coisa do aprendizado, eu acho que tem umas linhas de financiamento de centros de formação. E a Casa de Cinema criou um desses para roteiro. Então, para mim, a questão da formação passa pelo investimento nestes centros de produção que a gente já tem. A Zeppelin se desfez, o que é uma pena. Tinha um monte de gente com conhecimento que acabou se espalhando.* Mas tem muita gente aqui no mercado que ainda tem muito que ensinar, mesmo os caras autodidatas. O pessoal da Casa de Cinema foi autodidata, pois não tinha esse mercado. Eles começaram na raça, a aprender, trazer de fora. Eles criaram a APTC e trouxe


ram gente para formar profissionais aqui. Uma coisa que a gente não tem o hábito, é de transcrever coisas para montar. E toma um tempo absurdo a gente não ter transcrito. Isso é uma coisa que eu me dei conta, que é um amadorismo. Eu comecei a dar aula no jornalismo. O pessoal transcreve tudo antes de começar a editar. Se eu tenho um material organizado, essa organização vai fazer com que eu use mais material. Se eu tiver tudo desorganizado, não vou ver tudo. Então, ter esse cuidado faz com que o material captado seja mais utilizado e também qualifica meu trabalho, pois tenho mais opções. Esse conhecimento faz uma grande diferença, que pelo autodidatismo, muitas vezes não nos damos conta. E o conhecimento tá aí. Se pegar cada área, vai encontrar um cara que tem experiência fora, que pode trazer esse know-how. A gente tem uma ideia de fazer uma IDT, uma associação de montadores aqui e começar a promover esse tipo de coisa. Replicar esse conhecimento e começar a qualificar o mercado inteiro vai fazer com que se gaste menos grana, se entregue as coisas num prazo menor e se consiga inclusive trabalhar com os caras lá de fora, pois eles exigem um nível de técnica que não se tem conhecimento aqui. E tem uns caras aqui com essa vivencia, que podem contribuir.


* A Zeppelin não se desfez, apenas reduziu de tamanho. Na época dessa entrevista, rolou um boato de que a Zep tinha fechado e eu falei essa barbaridade baseado num boato. A Zeppelin continua firme e forte. No final de 2020, montei um filme pra eles inclusive. Era uma campanha de natal do Sistema S.


4 visualizações0 comentário
bottom of page